Ucrânia: feita por Lenin, desfeita por Putin?
“A Ucrânia soviética é o resultado da política dos bolcheviques e pode ser legitimamente chamada de ‘Ucrânia de Vladimir Lenin’”, disse Vladimir Putin em um discurso de uma hora no dia 21 de fevereiro. Nesse discurso, o presidente russo anunciou que reconheceria a independência das Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk, duas regiões rebeldes pró-Rússia no leste da Ucrânia. No dia 24 de fevereiro ele invadiu o país.
Não é apenas culpa de Lenin
Então, um Vladimir está apenas corrigindo o erro perpetrado por outro Vladimir um século antes? Não é bem assim. Não é apenas culpa de Lenin. Na escola de pensamento “A Ucrânia não é real”, atualmente bastante popular na Rússia, há muitas figuras históricas para culpar pelo exagerado senso de autoestima dos ucranianos.
“Tanto antes como depois da Grande Guerra Patriótica”, continuou Putin, “Stalin incorporou na URSS e transferiu para a Ucrânia algumas terras que antes pertenciam à Polônia, Romênia e Hungria. No processo, ele deu à Polônia parte do que era tradicionalmente terras alemãs como compensação e, em 1954, Khrushchev tirou a Crimeia da Rússia por algum motivo e também a deu à Ucrânia. Com efeito, foi assim que se formou o território da Ucrânia moderna”.
Este mapa, que muitas vezes aparece nos círculos de apologistas do Kremlin, ilustra e elabora esse ponto.
Tudo que você precisa é Lvov
O mapa mostra a área oferecida à Ucrânia por Lenin em 1922 (em azul), que contém não apenas a cidade rebelde de Luhask, mas um trecho de terra até o porto de Odessa, no Mar Negro, e mais além até a atual fronteira da Romênia.
[Veja o mapa nesta postagem]
Legenda: Os líderes soviéticos Lenin, Stalin e Khrushchev fizeram muito para ampliar a Ucrânia. Isso dá a Putin o direito de fazer o contrário? (Crédito [1]: Don Curzio Nitoglia)
Também estão incluídas (em verde) as áreas anexadas à Ucrânia por Stalin, antes e depois da Segunda Guerra Mundial (também conhecida como a Grande Guerra Patriótica na antiga União Soviética). Isso inclui a antiga cidade polonesa de Lviv (também conhecida como Lvov, Lemberg, Lemberik, Ilyvo, Lvihorod e Leopolis – uma indicação das muitas culturas sobrespostas na área) e uma área anteriormente austro-húngara e tchecoslovaca conhecida como Transcarpatia (veja também ‘Strange Maps #57’ [2].
E em roxo, há a Crimeia. Anteriormente um estado vassalo otomano, a Península da Criméia foi anexada pela Rússia em 1783. Ela permaneceu parte da Rússia até Khrushchev transferi-la da Rússia para a república soviética ucraniana em 1954.
Essa transferência celebrou o 300° aniversário da “reunificação da Ucrânia com a Rússia” (conforme o Tratado de Pereyaslav em 1654) e expressou a “confiança e amor sem limites que o povo russo sente pelo povo ucraniano”. Foi uma consequência natural da proximidade territorial, econômica e cultural entre a Crimeia e a Ucrânia.
Essa foi a história oficial. De acordo com esta análise do Wilson Center [3], a transferência pode muito bem ter sido projetada especificamente para aumentar o número de russos na Ucrânia e, portanto, o domínio da Rússia sobre ela. E pode ter sido uma maneira de reforçar o apoio dos líderes comunistas ucranianos a Khrushchev na luta pelo poder em curso pela liderança suprema dentre da URSS.
Retire os acréscimos feitos por esses três líderes comunistas e o que resta da “Ucrânia Soviética” é um estado muito menor. A data relevante aqui é 1654. Nesse ano, os cossacos ucranianos obtiveram proteção russa em sua luta pela independência da comunidade polonesa-lituana. A área amarela foi adicionada ao agora estado cliente russo da Ucrânia após o mencionado Tratado de Pereyaslav.
A parte anteriormente independente é a parte laranja no meio do mapa. Você não é tão grande agora, não é Ucrânia? O ponto mais importante deste mapa de uma Ucrânia muito, muito menor é que a versão atual desse país deve seu tamanho à Rússia, que, portanto, também tem o direito de descria-la.
O melhor vizinho é um vizinho pequeno
Em outras palavras, esta é uma licença para remodelar as fronteiras da Ucrânia como a Rússia achar melhor. É bastante seguro dizer que, sem as restrições do direito internacional, é assim que a maioria dos grandes países se sente em relação a seus vizinhos muito menores.
Exceto que essa abordagem das fronteiras internacionais é contra o direito internacional, e com razão. Isso é como atirar o bumerangue de Pandora. Imediatamente após o discurso de Putin, a internet repercutiu com alegações de que os mongóis queriam seu Império de volta (que em seu auge incluía grande parte da Rússia) e com perguntas sobre quando Putin entregaria Kaliningrado (uma vez a cidade prussiana de Königsberg —veja também em ‘Strange Maps #536’ [4]) de volta à Alemanha.
[Veja o mapa na reportagem abaixo]
Legenda: As áreas atualmente ocupadas pelas Repúblicas populares de Donetsk e Luhansk (azul escuro e claro, respectivamente) e as áreas maiores que elas reivindicam (sombreadas) – agora provavelmente um alvo para os “pacificadores” russos. A península sombreada no sul é a Criméia. Crédito [5]: Radomir Zinovyev / Wikimedia Commons, CC BY-SA 4.0 [6])
Dado que quase todos os países abrigam alguma queixa territorial em relação a seus vizinhos – sim, até Luxemburgo [7] – a proliferação dessa atitude transformaria a arena da política global de ‘Doze Homens e uma Sentença’ para ‘Clube da Luta’ em pouco tempo.
Talvez o melhor discurso sobre o assunto nesta semana (a reportagem é de 24 de fevereiro) tenha sido proferido por Martin Kimani, embaixador do Quênia nas Nações Unidas. Vindo de um continente cujas fronteiras foram quase inteiramente traçadas por colonizadores europeus, ele sabe uma coisa ou duas [8] sobre a iniquidade histórica do legado indesejado do império:
“Hoje, do outro lado da fronteira de cada país africano, vivem nossos compatriotas com quem compartilhamos profundos laços históricos, culturais e linguísticos. Na independência, se tivéssemos escolhido perseguir os Estados com base na homogeneidade étnica, racial ou religiosa, ainda estaríamos travando guerras sangrentas muitas décadas mais tarde”.
“Em vez disso, concordamos que nos contentaríamos com as fronteiras que herdamos, mas ainda assim buscaríamos a integração política, econômica e jurídica continental. Em vez de formar nações que olharam para trás na história com uma nostalgia perigosa, escolhemos olhar para frente, para uma grandeza que nenhuma de nossas muitas nações e povos jamais conhecera”.
Tornar a Ucrânia grande novamente
[Veja o mapa na reportagem abaixo]
Legenda: Ei Vlad, os mongóis ligaram. Eles querem seu império de volta, também. (Crédito [9]: Eric Feigl-Ding no Twitter)
Se tudo isso soa um pouco ‘kumbaya’ demais para Putin, há um motivo mais maquiavélico para não desmembrar a Ucrânia ‘leninista’. Basta voltar á “doação” de Krhushchev em 1954 para a Ucrânia da Crimeia, que já naquela época era habitada por uma clara maioria de russos.
Se uma das razões implícitas para essa transferência foi aproximar a Ucrânia da Rússia, então a reanexarão da península pela Rússia em 2014 teve o efeito oposto. A separação de Donetsk, Luhansk e, em breve, talvez outras regiões russófonas e russófilas da Ucrânia criará um paradoxo geopolítico para a Rússia: quanto mais da Ucrânia a Rússia absorver, menor será a chance de o que resta da Ucrânia voltar a a ser amigável a Moscou.
Resumindo: uma Ucrânia menor é uma Ucrânia mais pró-ocidental. Se Putin quer que seu maior vizinho eslavo seja simpático com seus objetivos geopolíticos, talvez ele devesse tirar uma página da cartilha de Lenin e ‘Tornar a Ucrânia Grande Novamente’.
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